terça-feira, 17 de junho de 2008

A VERDADEIRA RAINHA DA HOLANDA

Fiéis. Sem economia de tranqueiras, torcedores na expectativa por um jogo de Oranje
Arnild Van de VeldeDe Amsterdã, Holanda

Ela não se chama Beatrix, não tem coroa, nem uma adorável nora argentina. A "legítima" soberana da Holanda move-se sobre 11 pares de pernas, veste-se de laranja e atrás de si arrasta, aonde quer que vá, uma tremenda multidão. "Oranje" (diz-se: órani-eh), como esta monarca é carinhosamente apelidada por seus súditos, é a seleção holandesa de futebol, uma entidade que indiscutivelmente unifica seu povo, independente de credos e partidos. Povo este que, em torno do time, forma um espetáculo à parte - a torcida.
Por Oranje, entre simples e complicadas, a galera faz coisas incríveis: pinta ruas, decora cidades inteiras com bandeirolas, bonecos e outras tranqueiras, pendura bandeiras nas janelas, colore os cabelos e o rosto, e não sente a menor vergonha de sair por aí vestindo trajes para lá de esquisitos. Por ela, comete "loucuras", como dizem alguns europeus mais rabugentos. Por exemplo, enfrentar 16 horas de viagem, num esquema "bate-volta", só para vê-la jogar uma partida da qual se espera que saia derrotada.
Quando dá, dorme em acampamentos improvisados, onde o ambiente tem um toque farofeiro à holandesa, com cadeiras de plástico, cerveja a rodo e aquele cheiro penetrante da fritura de batatas. Quando não dorme, está fazendo muito barulho, metida em seu uniforme oficial - a cor laranja. Estádios de futebol mergulhados neste tom tornam-se palco de festas inesquecíveis.
Uma ocasião dessas foi a de sexta-feira passada, quando o time também lavaria a alma de uma outra torcida famosa - a canarinho. Naquele dia, estima-se que 130 mil holandeses se encontravam em Berna, cidade suíça com idêntico número de habitantes, para ver seu time jogar e bater a França por 4 gols a 1 - um resultado tão inesperado que até obrigou a arqui-rival Alemanha a mudar o tom de seus comentários.
Joachim Löw, o técnico alemão que minimizou o primeiro desempenho da Holanda na Eurocopa (3 a 0, contra a Itália), terá se lembrado do que disse aos jornalistas depois da partida, ao comparar os placares holandeses com os magros resultados alemães. De fato, há uma sutil diferença entre a inquietude de Löw, em razão da qual acabou sendo expulso de campo no jogo de ontem, em Viena, e a serenidade de Marco van Basten, seu colega holandês, cujo olhar já se tornou imagem de corte na transmissão dos jogos de seu país.
Em Berna, para bem receber os esfuziantes oranjefans, o prefeito mandou instalar três telões em lugares estratégicos e preparou um pelotão, formado por guias de turismo, voluntários e a polícia, que apesar do vocabulário de emergência na sonora língua holandesa, não dispensou o reforço de colegas nativos do idioma. Para os habitualmente reservados suíços, a contagiante energia laranja torna até mesmo simpática uma das características mais curiosas dos holandeses - a sovinice.
"Look, look, not buy" ("Olha, olha, mas não compra"), uma velha divisa batava, parece andar esquecida por ali. Nos programas de TV, comerciantes suíços exaltam a "lealdade do cliente holandês", e de quebra aderem ao fascinante universo oranje, em que imperam música, risos e dança, as defesas espetaculares de Edwin van der Sar, o chute de Wesley Sneijder, ou ainda o brilho da estrela de Ruud van Nistelrooy. Os jogadores holandeses são uma paixão nacional: van der Sar é um ideal de marido, Robin van Persie o mais bonito, Rafael van der Vaart, a resposta a David Beckman.
Acostumados à feliz algazarra dos Bastiaans, Marjoleins, Joopies, Mareikes, Berts, Annekes, Barts - seja lá como se chamem - os policiais holandeses estão tendo, no entanto, menos trabalho do que era de se imaginar. Ao contrário da notoriedade de outros tempos, quando torcida holandesa era sinônimo da fúria dos hooligans, o nem tão novo jeito de apoiar a seleção ganha, por toda parte, a simpatia dos que acompanham a Eurocopa 2008.
Casos isolados de extremistas políticos e pequenos batedores de carteira disfarçados de torcedores chegaram a ser registrados, mas sem grandes conseqüências. O que interessa mesmo saber é que a chanceler alemã Ângela Merkel já foi vista duas vezes em público com traje laranja. Ontem, de novo, quando assistia ao jogo em que seu "time de casa" venceu a Áustria por 1 a 0. "No fundo ela também é por nós", insinuou de brincadeira o diário "Telegraaf".
Vinte anos depoisCom seis pontos já conquistados na primeira fase da Eurocopa, a Holanda é a favorita do momento para levar a copa Henri Delaunay, como é chamado o troféu que a união dos clubes europeus de futebol (UEFA) concede ao melhor time do continente, em campeonato realizado a cada quatro anos. A última vez que o país consagrou-se campeão foi em 1988. Na época, a seleção foi recebida em Eindhoven e desfilou até Amsterdã, numa parada de horas, em que foi saudada de todas as pontes e ruas do caminho.
De início, o status surpreendeu observadores, especialistas e palpiteiros do futebol europeu, para os quais a Holanda já havia se tornado um time mais decorativo do que um desafiante capaz de causar alguma preocupação. A situação dos holandeses já parecia definida desde o sorteio do grupo C, que, ao incluir o campeão mundial, a Itália, e seu vice, a França, deixava os Países Baixos na condição de zebra. No chamado "grupo da morte", à Holanda parecia caber apenas votos de "bom retorno ao lar". A situação mudou ao final da primeira semana de jogos, em que a Holanda, que foi vice-campeã mundial duas vezes, derrotou os favoritos.
Hoje, às 20h45 (horário de Amsterdã), a equipe, que já está classificada para as quartas de final, enfrenta a Romênia.

Arnild Van de Velde é jornalista e colabora com Terra Magazine na Holanda.

Nenhum comentário: